02/05/2024

Sombras III

De cara envolta como que numa nuvem de pó de talco e sentindo-se a flutuar em denso nevoeiro, parecia-lhe ouvir umas vozes perto de si. 
Alguém, uma vida, um fim. Uma noite de luar negro. Era jovem e um espectro se acercara. E não havia resistido. Tudo se resumia, assim, a um ponto final. 
Pela maneira como ouvia a descrição parecia-lhe ver aquele seu ex-aluno da faculdade, aquele que via sempre como se fosse numa miragem. Um delírio, uma ilusão, um oásis inalcançável no seu deserto. Por vezes um sonho, outras, um pesadelo no seu sono agitado do meio da tarde. Via-o: o corpo esbelto, a cara miúda, o cabelo meio comprido… Era ele… ou delirava? Sentiu uma dor aguda. 
Num relance, algumas cenas passadas desfilaram pelos seus olhos. Viu-se a andar pelos corredores de mãos ocupadas pelo material de trabalho. Deslumbrou-se com aquele olhar que se cruzou com o seu pela primeira vez. Sentiu o coração bater apressado ao verificar que o tinha perto de si, na mesma sala. Experimentou uma sensação de frio na espinha, que a percorria, e pressentiu que a sua alma o amava. Reviu hipnotizada o seu sorriso que lhe falava mais do que muitas palavras. Viajou para além do impossível quando ele a amou. Reviveu momentos a que julgava não ter mais direito desde que perdera o único homem que até então tinha amado. Assistiu serena à confirmação pelo médico daquilo que já sabia. Olhou-o longamente enquanto dormia, retendo bem a sua imagem para não mais a perder. Mudou de cidade e deambulou por corredores diferentes, porque não podia cortar as asas a um anjo. Foi de novo mãe e pai ao mesmo tempo. Reviu-se a viver cada dia tendo como único objectivo a felicidade dos seus frágeis rebentos. Reconheceu-se a caminhar à pressa pela rua, acorrendo ao chamado de uma amiga. Avistou-o ao longe e fugiu de um encontro, sentindo o coração partir-se outra vez em mil pedaços. Lembrou-se dos meninos sozinhos em casa. Sentiu a vida irremediavelmente perdida quando viu o automóvel na sua direcção a grande velocidade. Nuvens e sombras a toldavam agora. Estava de novo no presente. Pensava. Não… Havia uma confusão qualquer. Onde estou? Sentiu frio. O coração acelerava… Alguém se aproximou rapidamente. Encarou-a. 
- Está viva! … 
Afinal, de quem falavam? 

Tinha acabado de acordar de um sono do qual não era para acordar. Do qual ninguém acorda assim... facilmente!

01/05/2024

Sonhos de Criança

A turma foi dividida em duas partes. Enquanto metade da turma tem aulas de Desenho, a outra metade tem Trabalhos Manuais. Depois trocamos. Destas duas, a aula que mais gosto é a de Trabalhos Manuais. Não é que não goste da de Desenho, mas é que não tenho muito jeito para desenhar; a não ser que seja Desenho Geométrico, aí já faço uns riscos mais ou menos. No entanto, gosto de ter o meu material, não gosto de andar a pedir emprestado às colegas. Só que ainda estou à espera que a Lucília compre, para me devolver, uma ponta do compasso onde se coloca a tinta-da-china, que ela me pediu emprestada, e que fez o favor de deixar escorregar pelo cano abaixo, quando a lavava debaixo da água da torneira. Ando farta de lhe perguntar quando é que me compra outra. Isso aborrece-me um bocado e não me deixa aproveitar estas aulas como deveria.
Quanto à aula de Trabalhos Manuais, essa sim, gosto, pois posso usar mais livremente a minha criatividade. Nestas aulas sinto-me extremamente motivada. Gosto dos trabalhos que lá faço e gosto da professora, o que me leva a desejar vir a ser, um dia, uma professora como ela. Sim, gostava de ser professora, comecei a sonhar com isso. Já o disse aos pais.
Mas será que os adultos têm em conta os sonhos das crianças?

27/04/2024

Leituras

A leitura exerce um enorme fascínio sobre mim. Ler permite-me a fuga para um mundo encantado, um mundo onde posso descobrir muito do que a minha curiosidade me pede e que não obtenho de outra maneira. Ler satisfaz-me e inquieta-me. Satisfaz-me porque me proporciona momentos de verdadeiro prazer e delírio, ao descobrir coisas novas; inquieta-me porque sinto uma avidez de ler tanta coisa a que não tenho acesso.
Já li quase tudo o que havia em casa para ler; leio o que vou encontrando e pedindo emprestado; leio os livros que vou buscar à biblioteca - àquela carrinha que passa por cá de tempos a tempos, e da qual não me deixam trazer todos os livros que quero, nem dos que quero, só dos da fita verde – mas leio também os que o meu amigo Zeca traz; leio outros que ele me empresta, do Tio Patinhas e de outros heróis de Banda Desenhada, se bem que alguns não fazem muito o meu género, mas à falta de outros, é melhor do que nada; leio também as revistas de fotonovelas e a Crónica que a minha amiga Manuela compra quase todas as semanas e me empresta, mas leio às escondidas, porque tenho medo que o pai me veja ler essas coisas… não é por nada, que acho que não faço mal nenhum, até porque já fiz onze anos, mas ele pode não compreender e ralhar comigo com aquela sua voz de trovão que me faz encolher toda.
E é claro que também leio os livros da escola, mas esses é por obrigação, apesar de quase nem precisar de os ler, pois o que percebo nas aulas quase me basta para apreender a matéria e tirar boas notas.
Há dias encontrei uns livros antigos do pai e, entre eles, uma Bíblia que tem feito as minhas delícias. Tenho vindo a lê-la, aos poucos, desde o seu início, enquanto a mãe me espreita no quarto, ficando a pensar que estou a estudar. Ela até diz às vizinhas que tem uma filha que não faz mais nada senão estudar, que não puxa para fazer mais nadinha; vê outras meninas da minha idade que fazem tudo em casa às mães, mas eu, que não sabe a quem é que eu saí…

(Publicado em: Memória Alada, 2011)

26/04/2024

A Casa dos Ratos — intermezzo (6.1)



Depois de muito matutarem cada um para seu lado, os ratinhos reuniram-se enroscados no ninho e guincharam uns aos outros o que cada um tinha pensado. Era preciso encetar a fuga: consenso, veredicto!
Havia de ser bonito! Assim não podiam continuar! Era mais que altura de passar o pé, marchar!

Era hora, agora, de orquestrar uma estratégia com pés e cabeça, para que a evasão fosse bem sucedida, pois estavam fartos de sonhar com uma vida livre, mas a verem-se atados de pés e mãos, sem se atreverem a pôr pé em ramo verde.
Então, com o pé no estribo, mas de pés de lã, que é como quem diz: pé ante pé; e a pé firme, haviam de dar com os pés àquela vida que lhes tinham imposto do pé para a mão. Com muito cuidado, sem pôr os pés na argola, quer dizer: não podiam perder o pé, nesta altura de pôr-se em pé e agir! Fugir, pois, é a única solução, bater o pé ao patrão; ele que pensara protegê-los, mas os tinha aprisionado fazendo deles diversão.
 
Se bem o ditaram, melhor o haviam de fazer.
Era só procurar algum ponto mais fraco na gaiola e roer. Alargar uma fresta e, ala!, zarpar!
Lá fora haveria um largo mar, uma praia, uma casa grande a explorar. Oh, música para os seus finos ouvidos! Já se viam todos idos, à larga, no bem bom e bem bebidos.

25/04/2024

Tatuagens Escondidas [2]

A vida…
Por vezes a vida escapa-se como areia por entre os dedos… e, no vento, levanta um pó fino como neblina que cobre os dias. E não se consegue ver nada para além dessa penumbra.
Os dias tornam-se páginas escritas de horas doridas, em que cada minuto teima em ser uma frase sem sentido, e em que cada segundo voa numa recordação que não se consegue escrever com letras. E o silêncio é uma falha na pontuação.
Sei que ainda sou pequena para compreender muita coisa. O meu entendimento tem o limite das coisas simples. Mas mesmo assim, tento arranjar respostas nas coisas pequenas, como as estrelas que brilham de noite… e, apesar do que não me dizem, mesmo sem perceber, vou pensando que deve ser tão natural morrer como nascer. Se assim não fosse, não nasciam e morriam também as flores… e as folhas das árvores… e a minha gatinha branca. A Princesa nasceu, cresceu, brincou, foi feliz, mas ficou doente quando um carro a atirou para a valeta. Depois ela morreu. Mas eu não queria que ela morresse. Mas também não queria que ela tivesse dores, porque se não tivesse morrido teria muitas dores e já não seria feliz. Se tivesse ficado a sofrer com dores era mais horrível. O melhor mesmo era nunca ter ficado doente. Mas também as flores acabam por adoecer e morrer quando as cortamos para pôr na jarra em cima da mesa. E se não as apanhamos do jardim acabam por secar passado o seu tempo, tal como as folhas das árvores quando acaba o verão.
A vida é assim! No fim, fica a ausência das folhas nos ramos das árvores e a saudade dos dias floridos.

22/04/2024

Sombras II

Tinha reparado com atenção em toda aquela inusitada cena na piscina e seguiu-os. Sabia como lidar com crianças, sentia aptidão natural para isso. Por isso foi-lhe fácil aproximar-se e falar com cuidado e meigamente. Procurando ganhar a confiança deles, começou por perguntar com se chamavam. Manuel e José, respondeu o maiorzinho, apontando para si e para o irmão, respectivamente. Que faziam ali sozinhos? Que não sabia da mãe. Esta, ao sair, tinha-lhe pedido que tomasse conta do irmão. Seria por pouco tempo. Não demorava. Uma colega tinha necessidade da sua ajuda e era preciso que lá fosse.
Primeiro pensou que ela tinha precisado demorar um pouco mais, e adormeceram no sofá da sala enquanto viam televisão. Do dia seguinte acordaram e ela não estava no quarto. Se calhar tinha saído para fazer alguma coisa e não tinha querido acordá-los. Comeram bolachas com leite, e mais tarde os iogurtes que estavam no frigorífico. E à noite a mãe ainda não regressara.
Hoje resolvera procurá-la nos lugares onde ela os costumava levar. Não tinham mais ninguém em casa. Sentia muito a falta da sua mamã. Tinha medo que lhe pudesse ter acontecido alguma coisa de mal.
O pequenino pedia a mãe. Pegou-lhe ao colo e acarinhou-o como se fosse filho seu. Adormeceu-lhe no regaço enquanto o acariciava. O outro encostou-se-lhe também e sentiu-se invadir de uma ternura imensa. Estes pequeninos precisavam de alguém que olhasse por eles, que lhes encontrasse a mãe, que os protegesse, tão indefesos e carentes estavam, e tão à mão de predadores, alheios ao perigo que corriam. Tinha que fazer alguma coisa.
Entrou com eles na igreja enquanto o mais pequenino dormia e ficaram um pouco em silêncio naquela penumbra refrescante. Pediu ajuda à Virgem. Era preciso fé e esperança.
Mais tarde, levou-os a lanchar e acompanhou-os a casa, talvez a mãe já lá estivesse. Não estava. Viu fotos... e o seu sangue gelou e ferveu... procurou nomes, telefonou. Fez-lhes o jantar e comeu com eles. Tranquilizou-os, encontraria a mãe! E adormeceu-os contando-lhes uma história.
Fez mais telefonemas. Sim, estava ali… meu Deus, deveria ser ela! Sentiu-se invadir por uma convulsão incontrolável, um sentimento de perda irreparável, um vazio sem esperança. Agora estes meninos não tinham ninguém, não tinham mais ninguém senão a si... e tomou a decisão: seria o seu pai. O pai que eles pareciam não ter.

21/04/2024

Sombras I

O tempo convidava a um mergulho naquela água reluzente. Mas o calor escaldante que se fazia sentir desenhava-se numa capicua de sofrimento. Caminhando pela beirinha da piscina, puxando pela mão o seu irmãozinho que ainda mal andava, o menino procurava desesperadamente com o olhar. No bolso, a chave de casa - uma mansão antiga, grande demais para dois meninos sozinhos. O pequenino chorava, ora caindo, não conseguindo acompanhar o passo agitado do irmão, ora sendo arrastado e obrigado, pelo mais velho, a levantar-se. A criançada ficou curiosa perante o espectáculo, e alguns adultos pareciam temer que os dois pequenos caíssem à água. Que se passaria com estes meninos que destoavam daquele ambiente? Infrutíferas buscas causavam cada vez mais desânimo neste menino de olhar cansado e fugidio. Havia já duas noites e dois dias em que tudo se resumia a uma espiral de angústia devastadora. Não a encontrava nos locais de lazer, que tão bem conhecia, habituado que estava a que ela os lá levasse. Procurara-a e não a encontrara. Urgia, agora, repensar a estratégia, antes que o desalento e o pânico se instalassem por completo. Sentado na soleira da porta da igreja, esperava. Talvez uma luz divina o iluminasse. Então pareceu-lhe que um anjo lhes falhava. Respondeu às suas perguntas como se o céu os tivesse vindo socorrer. Tinha necessidade de confiar em alguém. Contou tudo. O que acontecera, as suas inquietações, os seus medos e o como já não sabia mais que fazer para calar o irmãozinho. Aquele anjo bondoso tranquilizou-os e até conseguiu que o pequenino adormecesse. Escutava inebriado aquela voz melodiosa que lhe respondia serenidade e esperança. Então pôde acalmar um pouco, recostando-se de encontro ao seu peito, fechando os olhos, sentindo pousar em si a sombra das suas asas delicadas.

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