26/01/2011

Tempo de Acácias em Flor I

(continuação de Espírito de Natal)

Era chegada a hora de abrir portas e janelas para renovar o ar e para a luz vencer as sombras. Respirar. Dilatar os pulmões com o perfume fresco do sol; encher os olhos com as cores do vento. Colar o ouvido ao voo manso das aves e escutar a canção das estrelas. Respirar. Todos ansiavam respirar.
Não se pense que alguém está mal porque gosta. Umas vezes não sabe estar ou ser de outra maneira; outras vezes não sabe que há outras maneiras de estar e de ser; e outras, não tem oportunidades de chegar lá.
Desde que se mudara para a casa da filha, a vida de Maria Aurora quase se confinara àquelas quatro paredes. A sua rede relacional diminuíra drasticamente. Não conhecia vida social, tirando a ida diária à padaria para comprar pão – tarefa que se incumbira a si própria, ao menos apanhava ar fresco. Não tinha amigos; dos que tivera, uns tinham ficado lá onde morara e outros tinham sido levados pela idade ou pela doença. Quanto à família, esta era o que se tinha tornado: um desencontro de moucos, e de mudos, e de cegos. Maria Aurora azedara.
Quando a assistente social a convidou para uma experiência no Centro de Convívio ela pensou que ainda havia muitos mundos desconhecidos para si.
– Centro de Convívio?... – imaginou uma sala cheia de mesas e cadeiras, como num café, com pessoas a jogar às cartas e ao dominó – o dia todo?...
A assistente social soltou um leve sorriso ante a cara insegura da senhora.
– Nem tem de ser o dia todo, nem todos os dias.
O Centro de Convívio é uma resposta social vocacionada para a animação e lazer, que proporciona, como o seu nome indica, convívio às pessoas que dele fazem parte, com o principal objectivo de prevenir a solidão e o isolamento. É direccionado, sobretudo, a pessoas reformadas do mundo do trabalho, desocupadas, que, por isso, apresentam carências ao nível relacional. O convívio pode ser proporcionado, com base no que necessitam e no que realmente gostam, através de variadas actividades planeadas e dinâmicas artísticas, recreativas e culturais tais como: passeios e excursões; actividades de teatro, música, ginástica; desportos e competições desportivas adequados àquelas idades como, por exemplo, o remo adaptado sénior mais; entre outras.
Maria Aurora, ao começar a perceber, sentiu crescer água na boca… se calhar, era isso mesmo que precisava.

Quando Maria Aurora foi pela primeira vez, reparou que as acácias, ao longe, começavam a florir.

11/01/2011

Espírito de Natal IV


(continuação de Espírito de Natal III)

O ambiente em casa era de cortar à faca, disse-lhe. Contou-lhe tudo enquanto as lágrimas lhe escorriam grossas pelo rosto abaixo e até os soluços lhe cortarem as palavras. Queria salvar a sua família. E salvar-se a si de morrer afogada nela e com ela.
Mas uma assistente social não tem receitas milagrosas para solucionar todos os casos que lhe são colocados. Não há comprimidos para isso. Poderá, eventualmente, algum placebo fazer efeito, mas não sob a forma de qualquer pílula. Por isso não era assim tão fácil actuar. Cada caso é um caso. E este era um caso complexo que iria, muito provavelmente, requerer a intervenção de uma equipa multidisciplinar. Mas para que viesse a haver sucesso todos se teriam de dispor a colaborar. Uma ajuda só é eficaz se sentida de dentro como uma necessidade. Porque ninguém pode ajudar quem não quer ser ajudado.
Havia, pois, que identificar causas, ir ao fundo da questão, e trabalhar em conjunto no sentido de as eliminar. Mas, até lá chegar, o caminho poderia ser longo. As verdadeiras causas poderiam estar camufladas debaixo de várias camadas de pó que lhe tivesse assentado em cima, e que seria preciso remover antes. Uma limpeza, uma lavagem de balde e esfregona com o detergente adequado. Só que, à mistura com o pó acumulado pode haver manchas e nódoas difíceis, ou mesmo impossíveis, de dissolver. Algumas visíveis a olho nu, outras nem tanto. Uma gravidez; uma depressão; um comportamento adicto: toxicodependência, alcoolismo, vício do jogo... e outros. Um círculo vicioso de causa/consequência: uma pescada de rabo na boca. Uma cadeia que é preciso quebrar. Assim haja a força necessária para isso; e se esta não existe há que criá-la, senão nada feito.
Para já, era preciso haver ali uma intervenção a nível psicológico no sentido de avaliar situações particulares. Há problemas que não podem ser olhados de cima, de ânimo leve; e no que toca a problemas de comportamento humano, então, nada é simples nem linear. A complexidade da mente humana leva a que a capacidade de encarar as situações seja diferente de pessoa para pessoa. Além disso, há todo um mundo à volta, a fazer das suas, como camadas de folhas de jornal envolvendo uma marmita, mantendo-a aquentada. Se não se desembrulhar o pacote, o cozinhado vai-se conservando, durante algum tempo, com alguma temperatura, que nem sempre é a ideal: nem é quente nem é fria. Por conseguinte, emergir ou não de uma situação problemática ficará a dever-se a uma simbiose de factores internos e externos à pessoa.

Maria percebeu isso. A esperança mantivera-a, e ainda a mantinha, à tona. E a oração, mastigada com essa esperança, tinha povoado aqueles seus dias que se queriam de festa e alegria, mas que de amarguras se fizeram. E porque nenhuma luz conseguira romper o escuro em que a sua família se encontrava, precisava de mais ajuda para transformar a esperança em resultados visíveis à luz do dia. Sabia que Deus faz milagres através das mãos humanas. Afinal, não foi por acaso, nem em vão, que Ele se fez Homem para vir ao mundo onde habitam os homens. Ele tomou em si a natureza humana para que os homens se possam curar do mal que os enferma. Podia ter-se limitado a ser o Deus que era e a actuar no mundo conforme quisesse. Estenderia a Sua mão poderosa e tudo poderia acontecer, unicamente, consoante a Sua vontade. Mas isso seria coarctar a liberdade do ser humano, e Ele quer que os homens mantenham a capacidade para agir livremente. É claro que isso também os leva a muitas escolhas erradas, que causam prejuízos aos próprios e aos outros. Tinha sido o que acontecera ali. Escolhas erradas tinham-nos levado àquela situação complicada.

Mas se Deus permite que se caia, também pode fazer conjugar diversos factores a nosso favor para nos conseguirmos levantar, se estivermos voltados no mesmo sentido. Há uma história que fala de alguém que todos os dias rezava insistentemente a Deus para ganhar a lotaria. Até que um dia Deus se resolveu a responder-lhe: a minha parte será feita quando tu fizeres a tua; não podes querer que te saia a lotaria enquanto não comprares primeiro o bilhete.

Maria entendera que as mãos são tanto para se elevar em oração como para se deitar a uma luta que é preciso vencer.
E, assim, com a força de Deus e  um trabalho em equipa, no próximo Natal o espírito de Natal haveria de regressar.


(Continua em Tempo de Acácias em Flor I)

05/01/2011

Espírito de Natal III

(continuação de Espírito de Natal II)

Maria esperou. Mas, apesar da esperança que se lhe aninhou no coração, o Natal passou e o espírito de Natal não veio.
Maria Aurora barafustava a toda a hora: com a filha; com o genro; com os netos. Alcides, já sem nenhuma paciência para a aguentar, parava cada vez menos em casa. José Maria e Matilde passaram a fechar-se cada qual no seu quarto, isolando-se do resto da família e do mundo. E Maria dizia mal da sua vida, ao mesmo tempo que elevava o seu pensamento ao Deus Menino que nascera para resgatar os oprimidos, pedindo-lhe uma luz que a iluminasse, a fim de conseguir encontrar uma solução para os problemas da sua família.
Já novo ano. Já Reis. E ela reflectia em como os Magos tinham ido do Oriente ao encontro do Salvador, guiados unicamente por uma estrela. Tinham feito uma caminhada durante meses até o encontrarem. Pois ela também haveria de caminhar. Sabia, tinha fé, de que uma estrelinha a guiaria. O espírito de Natal não tinha vindo, mas a esperança que lhe restava dizia-lhe que ele não se ausentara para sempre. Só precisava de um ninho quente para pernoitar e ali, no seu lar, definitivamente, não o havia nesta altura. Era preciso prepará-lo. Tinha, pois, de passar à acção, não podia ficar parada, de braços cruzados, numa eterna espera de que o espírito de Natal lhe caísse do céu, ali, assim sem mais nem menos, e que num estalar de dedos, num passe de magia, acontecesse o milagre esperado, sem nada fazer por ele.
Talvez que ele viesse só no próximo Natal – há coisas que levam tempo –, mas não é o tempo por si só a dar conta do recado; tem de se trabalhar para conseguir resultados. No entanto, Maria sentia-se impotente para, sem a cooperação de todos os elementos da família, conseguir o que quer que fosse. E eles nada faziam para emergir daquela situação, muito pelo contrário, o seu rumo era em direcção ao fundo.
Tinha chegado, assim, a hora de engolir a vergonha e procurar ajuda externa especializada. E não era tarde nem era cedo – era agora.

(continua em Espírito de Natal IV)

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