23/04/2011

Em Tempos de Morte e Ressurreição


Quem não tem dinheiro não tem vícios.
Num rasgo de lucidez, Alcides decidiu parar.

As contas continuavam a amontoar-se. Jogar, que começara por ser um hobby, passou a ser um meio de tentar arranjar dinheiro pra pagar as dívidas, mas acabou por ser um vício que as amontoou ainda mais. Um beco sem saída, um precipício, um abismo.

Há caminhos que, quando percorridos desenfreadamente, levam ao abismo. À noite. À escuridão. À morte. Quem gasta mais do que aquilo que pode pagar cairá, com certeza, nas mãos daqueles a quem fica a dever. Depois não se pode queixar de que a vida lhe foi madrasta. Não. Ele é que não soube fazer da vida sua mãe, porque fechou os olhos e os ouvidos quando ela o procurou ensinar. Pensou ser maior do que ela e que já nada tinha que aprender. Era maior e vacinado. Já sabia tudo. Ela era antiquada, não era do mundo de hoje.

São assim muitos filhos em relação aos pais quando pensam que já sabem mais do que eles e dispensam a sua sabedoria de experiência feita. São assim os homens em relação à História quando a olham como passado velho e gasto que passou e nada mais. Que os tempos de hoje são diferentes, muito diferentes… E quem não avança recua. E é verdade. Até é verdade. Mas tem que se ver muito bem por onde se vai avançar. Porque nem todos os caminhos são de fiar. É claro que qualquer um se engana (até o GPS pode falhar). Quem nunca se enganou que atire a primeira pedra. Mas há que ter a coragem de ver e admitir o erro, parar e voltar atrás.

Alcides parou. Fez-se-lhe stop. Parou. O sinal de STOP avermelhou-se-lhe na cabeça e espalhou-se-lhe pelo corpo retesando-lhe os músculos, paralisando-lhe o sangue nas veias e deixando-o branco de morte. E pensou. Que vida era aquela sua que em nada se parecia com vida? Como que uma quase dormência que o trazia sedado, amarrado a um mundo de alucinação. Uma mentira. Uma mentira real, ou uma real mentira era o que era.

Parar, só quando se dá de caras com um sinal de stop numa barragem intransponível, é chegar ao limite sem se ter dado tempo para apreciar qualquer paisagem pelo caminho. E a travagem tinha sido tão brusca que o deixara descalço e esfrangalhado. Ainda atordoado viu que não dava para continuar, mas o caminho para trás podia ser longo e pedregoso; bastante penoso para se fazer sem calçado. E mais branco ainda ficou.  Deixou-se, assim, ficar no chão, a pensar que sozinho não era capaz de sair daquela situação. Melhor sorte teria ao cair no abismo agora, atirar-se já. Se vida não era, morte seria.

Mas alto lá! Stop! Morte, sim, mas não a dele. Mate-se o vício que esse é que tem que morrer. Pois ele, Alcides Baptista, ressuscitaria para a vida. Não seria, se calhar, de um dia para o outro… nem ao terceiro dia, mas a vontade firme de vencer, que lhe ressurgia como aurora, não era um viciozeco que lhe a havia de tirar!

14/04/2011

Em Tempo de Andorinhas


Tinham chegado as andorinhas. E enquanto umas depressa começaram a recolar os ninhos antigos outras construíam os seus próprios, de raiz. Migalha a migalha. Gota a gota. Pedaço a pedaço. Logo pela manhãzinha a laborar e sempre de alegres gorjeados.
Dentro de pouco tempo as famílias aumentariam e formar-se-iam novas famílias. Novas asas. Novos voos. Novos ninhos. Os beirais estavam a ficar florescentes de vida. É certo que também deixavam um lastro de porcaria pelo chão além, mas nem só de belezas se compõe a vida…

O menino saltou-lhe. Isso fez Matilde voltar a atenção, do que se passava lá fora, para o que se passava dentro. Dentro de casa. E dentro de si. Dava para estabelecer alguma analogia. Há vidas tão cheias de beleza e que dão em porcaria; e há porcarias de vida que dão em coisas boas. Assim se passava consigo: um misto de feio e belo; de conspurcado e puro.
Se houvera horas em que se sentira uma desgraçada, deixava que esses sentimentos ficassem agora em plano secundário, queria colocar isso fora das suas preocupações. A sua preocupação, de momento, era uma só: o filho no seu ventre. Não queria que ele absorvesse as suas tristezas, as suas mágoas, os seus fantasmas, por isso essas coisas tinham de ser atiradas para longe.
Engravidara numa fase negra da sua vida, que mais negra ainda ficara quando o seu pseudo-namorado a fizera escolher: ou ele ou a gravidez. Ele não devia ter feito isso: perdera. Arrancara-lhe um bocado da vida, mas perdera. Quase ganhara, pois não tinha sido fácil, também, enfrentar as feras em casa. Se não tivesse tido ninguém a jogar consigo na sua equipa, ele teria acabado por ganhar, porque era o mais forte, o mais bem treinado, e a ela tinham-lhe fugido todas as forças.

Tinham passado quase três meses desde então – por alturas do Natal, quando a mãe andava aflita à espera do espírito do Natal, que não havia meios de se manifestar, mas em que ele viera subtilmente, sem se fazer abertamente notado, aonde era mais necessário. E o seu filho, com sentença de morte chantageada, tinha escapado à matança dos inocentes.
Ainda não arrecadara muitas vitórias, ainda fraquejava algumas vezes quando a vida lhe doía na alma. No entanto, aquele jogador de futebol, que lhe pontapeava lá dentro, era quem mais certeza lhe dava de que uma vida humana deve ser preservada acima de qualquer outro valor; acima de qualquer vergonha, carreira, futuro, família ou amor; e ainda mais quando é carne da nossa carne, sangue do nosso sangue.

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